27/4/2020
Em 2019, um paulistano de 26 anos perdeu o emprego. Tendo um filho pequeno para criar, foi trabalhar como motorista de aplicativos de transporte. A cada mês, alugava um carro diferente e passava dentro dele mais de 12 horas por dia, para cobrir os gastos e obter algum lucro. Um dia, começou a tossir, depois expectorar, mas não tinha tempo de ir ao médico ou ao hospital. Acabou morrendo “vítima de uma doença simples, que se trata com um antibiótico comum”, relata o patologista Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que conversou com a viúva.
Diferenças de renda, infraestrutura urbana, gênero, raça e organização da saúde pública são decisivos para determinar quem fica doente, quem sucumbe a determinada moléstia, onde as doenças vão aparecer e sobre quem vão recair as consequências econômicas. São os determinantes sociais da saúde, conceito usado por sanitaristas, epidemiologistas e médicos da família para designar tanto as causas não diretamente biológicas das doenças quanto as do bem-estar.
Numa mesma cidade, a má distribuição de verbas da saúde, as diferentes condições urbanísticas e a segregação social podem, igualmente, ser determinantes para a emergência de doenças. Com a chegada da Covid-19, o avanço da doença para as periferias logo se tornou uma preocupação central. Os primeiros casos no Brasil foram verificados em bairros centrais e de maior poder aquisitivo de São Paulo. Segundo o Boletim da Covid-19, publicado em 17 de abril pela prefeitura paulistana, o Morumbi, distrito de classe alta da zona sul, continua tendo o maior número de casos confirmados: 297. Mas já há mais mortes em distritos como Brasilândia (54), na zona norte, Sapopemba (51) e Cidade Tiradentes (37), na zona leste. No Morumbi, são sete mortes.
“O risco de morrer antes do tempo na cidade de São Paulo, hoje, é mais dependente do código de endereçamento postal [CEP] do que do código genético”, diz Saldiva. Apontando para um mapa da incidência de doenças cardiovasculares no município, o pesquisador mostra que os números são piores nas periferias, com exceção do Brás, bairro central com alta concentração de sub-habitações e imigrantes vivendo em condições precárias. “Se eu souber a distância do centro onde vive determinada pessoa, sua cor de pele, gênero, situação socioeconômica e grau de instrução, explico 62% da variabilidade dessas doenças”, afirma. “Ou seja, na faculdade de medicina, ensino só 38% do que é necessário para evitar uma morte.”
A epidemiologista Rita Barradas Barata, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM-SCSP), observa que, como o coronavírus da atual pandemia é um agente infeccioso novo, “toda a população é suscetível e ninguém tem imunidade prévia”, ou seja, em princípio, haveria certa igualdade de risco. Por um lado, os idosos, que têm sido o grupo mais vulnerável, são proporcionalmente mais frequentes nas camadas de renda mais alta. Por outro, as doenças preexistentes estão mais presentes entre as classes de renda mais baixa. “Todas as camadas sociais estão vulneráveis, mas as condições de vida e de saúde são muito desiguais no país e isso pode, sim, ser um problema”, aponta.
Barata cita a aglomeração dos domicílios, predominante nas periferias urbanas, onde vivem populações mais pobres. “Esse é um elemento que pode facilitar enormemente a transmissão de qualquer doença respiratória. E assim deve ocorrer no caso do coronavírus”, afirma. “As piores condições de alimentação, maior prevalência de doenças crônicas sem controle adequado, como diabetes, hipertensão e obesidade, podem aumentar o risco para as populações mais pobres, sem contar o enorme impacto que a cessação das atividades de trabalho e fontes de renda para a grande maioria da população pobre está provocando”, alerta. Mesmo o isolamento social, recomendado para se precaver contra o vírus, é mais difícil nesses bairros do que nas áreas centrais, onde as residências são maiores e dispõem de melhor infraestrutura.
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